Friday, June 29, 2007

ascot

Enquanto eu ando a tentar fazer clonagens e outras coisas assim que roubam tempo à arte de postar, muitas coisas têm acontecido por terras de Sua Magestade que merecem um comentário. E os chapéus de Ascot!? Sim, isso é que é um tema verdadeira importante, que interessa ler sobre o enésimo atentado no Iraque?! Olhem que catitas! Chapéus para toda a ocasião, não é mesmo?



a outra cidade

Longe das barricadas Belfast é uma cidade bonita, com muita coisa para ver.

Custom House
Opera House
Zona Portuária, onde foi construído o famoso Titanic.




City Hall
Ainda tive tempo para dar um pulo ao norte da Irlanda do Norte, percorrer a linha de costa do Mar da Irlanda e ver o sítio chamado Coastway, onde se podem ver umas engraçadas formações geológicas. É difícil encontrar uma coisa mais bonita do que o mar.


scottish word of the week

Numpty, n. a stupid person, an idiot

não fui a única!

Oh, God. I bought tickets for this thinking it was the band. Why is it being listed everywhere, including Ticketmaster, as Belle & Sebastian? So f.. misleading.
Waste of time & money. Ads for this gig were very misleading, showing pics of Belle & Sebastian, but only 1 guy was playing CDs of dance music. He was not from B+S. It was a rubbish night. Might as well just gone to a disco.

Thursday, June 28, 2007

belfast - a tour política

Belfast é uma cidade impressionante. Não estava a espera de encontrar arame farpado em casas, delegações de polícia que mais pareciam postos militares, bairros com murais e com um ar pesado, em que facilmente se consegue imaginar grupos paramilitares a patrulharem as zonas que separam as zonas pró-Irlanda (católicas) das zonas pró-Britânicas (protestantes). Foi assim que o Francis, dono do B&B onde fiquei e o meu guia político, me explicou a situação política da Irlanda do Norte. Ele não entende a situação da Irlanda do Norte como uma guerra entre religiões, mas sim como uma luta pela independência da Irlanda e contra a ocupação britânica por pessoas que, por acaso, são católicas. Contra pessoas que, por acaso, são protestantes.



"Muro de Berlim". Com 1,5 milhas de extensão, separa as zonas católicas das protestantes.

São imensos os murais espalhados pelos bairros pró-Irlanda e pró-Britânicos. A tour foi muito mais rápida do lado protestante, uma vez que o Francis era claramente a favor da integração da Irlanda do Norte no "Free State". Os murais do lado protestante são compostos de elementos demontrativos da lealdade à Coroa Britânica, como o punho preto fechado e a bandeira do Reino Unido, bem como a imagem de elementos integrantes dos grupos armados.


Do outro lado da barricada...

Referência à guerra de fome que elementos do IRA fizeram pelo direito a serem reconhecidos como presos políticos em 1981.

Símbolos pró-Irlanda: a bandeira, o lírio branco, diversas fotografias de elementos do IRA:

Referência à expulsão de milhares de Irlandeses dos campos, à fome que condenou à morte outros milhares, e à emigração em massa que ocorreu no século XVII e que mudou as características demográficas e políticas da Irlanda. Nesta altura, o império Britânico iniciou uma campanha chamada "Plantation", durante a qual ofereceu terras a Escoceses e a Ingleses. Foi assim que a maioria das pessoas da Irlanda do Norte passou a ser Protestante e leal à coroa.

A aprendizagem do gaélico passou a ser proibida e o ensino passou a ser feito às escondidas, "behind the fences", como pode ser lido neste mural.


Este mural descreve a perseguição religiosa que os católicos sofreram.


Fiquei com muito para pensar depois desta viagem. E menos ignorante, o que é muito bom!

o não concerto

Ir ver os Belle and Sebastian era a desculpa para um fim-de-semana de 3 dias em Belfast. Do grupo nascido e criado em Glasgow apenas vi isto:

Ou seja, nada. Nos bilhetes que comprei a referência ao grupo era clara - Belle and Sebastian (Dj set) - mas parece que o importante da coisa era o que estava entre parêntesis. Sorte a minha, vida a minha, situação tipicamente minha.

Acho que é apropriado criar uma entrada nova na Wikipedia, algo como: "joanice, joanismo", palavra que descreve uma situação improvável, estranha, com contornos cómicos, própria de quem tem a cabeça na lua (...)

Thursday, June 21, 2007

a vingança do búfalo

Sinto-me solidária com a sorte daquele pobre búfalo, de um lado leões, do outro crocodilos... mas atenção que os ventos são de mudança :)

encomenda de miminhos

Ontem recebi uma encomenda. Batatas palha, pão ralado, o inimigo público e um filme da minha irmã; música da Sara e a receita de bolo de chocolate da Ermelinda. Fiquei tão contente com aquela surpresa que fiquei a chorar durante meia-hora.

o filme dos homens bonitos

As minhas células morreram, o DNA estava contaminado e as clonagens continuam sem funcionar. Devo ter irritado os deuses, porque ando a coleccionar maus e improváveis resultados. Nem o filme dos homens bonitos foi capaz de me deixar bem disposta... Bem, amanhã vou para Belfast e para a semana vou começar tudo de novo. Vai ser a semana em que tudo vai correr bem, para variar.

Saturday, June 16, 2007

ermelinda

A Ermelinda é uma das melhores pessoas que conheço. Adoptou-me há cerca de 6 anos, quando uma monumental gripe me deixou de cama, incapaz de fazer o que quer que fosse e a precisar de miminhos. Foi a partir daí que passei a ser a sua sobrinha de brincar. Levou-me chá de limão com mel às tantas da manhã quando eu não parava de tossir (cujo sabor, ou a memória dele, nunca mais vou esquecer) e pôs-me boa em menos de nada.

Como uma vez a Eunice disse, ao pé da Ermelinda podemos ser pequeninos outra vez porque ela trata de nós, dá-nos de comer coisas boas, podemos brincar e, no final dia, temos leite com chocolate à nossa espera.

Tive a sorte de encontrar esta maravilhosa família, que tem na Ermelinda a sua trave-mestre, e à qual estou unida por profundos laços de ternura. Podia escrever um tratado sobre as imensas qualidades desta grande mulher, generosa, delicada, inteligente e com uma força quase irreal, mas quero simplesmente dizer que gosto muito, muito, dela. E aqui ficam as suas túlipas amarelas, que tanto gosta, directamente de um bonito campo da Escoce. Parabéns, Ermelinda!

Friday, June 15, 2007

saramago

O Saramago está a escrever um novo livro. Espero que ele escreva mais 10, 1000 se possível fosse.

receitas precisam-se

Estou a criar anticorpos à minha comida. Preciso de ideias para comida que seja facilmente aquecida no micro-ondas para os meus almoços. Não posso comer mais lasanha, frango com massa ou pastelão. Preciso de ajuda. Urgente.

Thursday, June 14, 2007

praia

Este ano vou falhar a nossa ida à praia, e muita falta me vão fazer os momentos de tranquilidade (bem, a que é possível ter quando se está rodeado de 100 mil pessoas) junto ao mar, a dieta de sardinha-carapau-sardinha-carapau, o maldizer sobre o casal eusébio e pinha, o cinema e os crepes de chocolate. Vamos ter que ter conversas online e inventar uma maneira de enviar a brisa marinha aqui para a Escoce.

Portugal? Beautiful horses!

Na cidade de Glasgow qualquer Glaswegian (habitante da cidade de Glasgow, referindo-se também ao nome do dialeto local) é um potencial cromo. É claro que os taxistas não podiam ser uma excepção. Muito afáveis, arranjam sempre algum assunto para conversar. Uma vez apanhei um velhote, tipicamente escocês, que quis saber de onde eu era, bem, as perguntas habituais. Já tinha visitado Portugal, pois a mãe quis ir a Fátima quando ficou doente. Quando lhe perguntei se tinha gostado de Portugal, respondeu-me que sim, muito. "Portugal, beautiful horses! (Portugal, bonitos cavalos). Bem, quanto a cavalos não sei, mas cavalgaduras temos, e muitas. É abrir o jornal e ler.

Wednesday, June 13, 2007

bolo de cenoura

Na terça tinha a uma tarefa árdua pela frente, a segunda recolha de sangue dos meus ratinhos. Na semana passada, mesmo com a ajuda da Bárbara, demorei 9 horas a fazê-la. Por isso achei que merecia ter uma coisa boa à minha espera, quando fosse almoçar, e decidi fazer um bolo de cenoura com cobertura de chocolate para levar para o laboratório. Pouco depois de ter posto o bolo na sala do chá, foi engraçado ver os olhinhos dos meus colegas a brilhar! Mas foste mesmo tu que fizeste, é home made? Mas o chocolate, o chocolate compraste? Não, meus amigos, os bolos não nascem em pacotes, podem ser feitos e sabem bem melhor. Foi um verdadeiro sucesso, só sobraram migalhas depois do chá das 10, e foi assim que descobri que o caminho mais fácil para chegar ao coração de um escocês é pela barriga.

springwatch

A televisão é democraticamente má por este mundo fora. Mas há honrosas excepções, como um programa da BBC chamado Springwatch. A ideia do programa é muito simples e consiste em filmar a chegada da Primavera, a partir de vários pontos de reportagem espalhados pelo Reino Unido. As pessoas são convidadas a enviar filmes - desde o nascimento de crias de várias espécies, à filmagem de lontras, ao acompanhar da vida de um casal de raposas (filmado aqui em Glasgow), tudo é documentado e mostrado em directo. Simples, bonito, emocionante, pedagógico.

cricket, ou o jogo mais chato do mundo

Continuo sem perceber a graça do cricket. Ok, há uma série de tipos que batem numa bola, correm à volta de um campo e há algures 3 pauzinhos espetados no chão. É este o meu extenso conhecimento do cricket, que só não é mais aprofundado porque é difícil acompanhar um jogo inteiro com os olhos abertos. Convenhamos, um jogo que tem paragens para que os jogadores possam beber chá, e que pode durar até 5 dias, não pode ser emocionante! Mas lá está, por cá este jogo conta com uma longa história, é seguido com muita paixão, e por isso já merecia uma referência neste blog.

poesia popular

O meu avô António era um excelente contador de histórias. As personagens de Donelo assumiam uma dimensão quase irreal, como era o caso de uma mulher a quem chamavam Maria Raposa, vá-se lá saber porquê, talvez gostasse muito de galinhas. Uma vez, estava eu e o meu avô a passar pela casa da tal mulher e eu, com o meu belo sentido de oportunidade, lá perguntei ao meu avô, alto e bom som, se sempre era ali que vivia a Maria Raposa. "Está calada, que ela ouve bem", disse-me ele. Mas uma outra mulher ficou-me na memória, chamada Luísa, se esta não me falha. Poetisa popular ou simples invenção do meu avô, escreveu uns poemas minimalistas que passo a transcrever (e peço ajuda à minha tia e ao meu pai para me ajudarem a imortalizar o resto):

Atirei um limão correndo,
À tua porta parou.
Se a menina não me quer
Aqui há coisa.


Foi debaixo daquele carro
Que arranjei meu casamento
Anda cá carro da minha alma
Que te quero abraçar.

Indo eu por aí abaixo
Aos peixes com uma podoa
Vem de lá o Homem da escada
Quem tirou daqui este martelo?

Monday, June 11, 2007

do aquecimento global

O Sr. Gore pode vir aqui à Escoce e ver. No sábado esteve calor, sim, calor ao ponto de eu ter usado uma t-shirt! Atrevo-me a dizer que estavam uns estrondosos 26 ºC! Fiquei a giboiar na relva do jardim botânico no sábado à tarde e a verdade é que a minha cara, aparentemente, passou do tom cinzento para um muito mais agradável rosado :)

praia na escoce?

Os planos eram os de comemorar o dia de portugal e coisa e tal com a comunidade portuguesa em Glasgow, mas acabou por se transformar numa ida à praia onde os portugueses estavam em minoria. Fomos a uma ilha na costa Oeste da Escoce, chamada Cumbrae. O céu estava cinzento, a areia não era bem areia, mas o que é facto é que passámos o dia esticados a comer uma espécie de barbacue portátil, com salchichas, pão, pimentos e batatas fritas. E a olhar o mar.





west end is the place to be

Está a decorrer em Glasgow o West End Festival, fértil em música, caminhadas, teatro, dança, debates... Há tanta coisa a acontecer, que o complicado é decidir o que fazer. Ontem houve um desfile, com bandas, sambas e gaitas de foles à mistura a desfilar na Byres Road. Todos os cafés prolongaram-se para a estrada e num deles estavam à venda os nossos queridos pastéis de nata! Digo-vos, souberam-me pela vida!




Saturday, June 9, 2007

e novamente a problemática do kilt


tempo esquizofrénico

No outro dia, numa daquelas conversas de elevador, uma mulher disse-me “Glasgow, 4 seasons in one day”. No circuitos estúpidos e nonsense que o meu cérebro faz tantas e tantas vezes, pensei “mas por que raio esta tipa me está a dizer que está hospedada no Four Seasons por um dia, quero eu lá saber”… Passado um bocado é que processei correctamente a informação e até é bem verdadeira! Este tempo na Escoce é doido! Quando me contavam que estava sempre a chover, pensei que era um exagero, mas não é. O sol é uma raridade, que cada vez aprecio mais. Ontem, depois de uma semana negra de trabalho, resolvi que a solução para os meus problemas era a fotossíntese. E foi assim que, quando cheguei a casa, peguei num livrinho e sentei-me ao sol, no meu pequeno pátio, a encher a barriguinha de raios de sol.

Friday, June 8, 2007

senhor muito simpático

Não é só no sotaque que esta gente da escoce é diferente. Todos os dias de manhã encontro um senhor, muito simpático, que invariavelmente me cumprimenta com um hello, e cujo trabalho é ajudar as crianças a atravessar a estrada quando vão para a escola.

maldita colina

Uma subida íngreme (que exagero, é apenas ligeira) separa a minha casa do supermercado. Cada coisa que compro é cuidadosamente pesada e pensada para não correr o risco de perder os braços a meio da subida. Raios, a falta que um carro faz! Isso ou a invenção do teletransporte, que tanta falta faz à humanidade. E sem falar no estilo que dá a quem, ao carregar num botãozinho que tem ao peito, desaparece no meio do ar.

laços

Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."
- Criar laços?
- Exactamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
- É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra...
- Oh! não foi na Terra, disse o principezinho.
A raposa pareceu intrigada:
- Num outro planeta?
- Sim.
- Há caçadores nesse planeta?
- Não.
- Que bom! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito, suspirou a raposa.

Monday, June 4, 2007

Lisboa feita para todos

Destinatários: Candidatos à Câmara Municipal de Lisboa, Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; Presidência da República


A cidade de Lisboa é nossa, de todos. Pelo menos assim o deveria ser. Mas basta andar pelas ruas da cidade, com um olhar mais ou menos atento, para verificar que assim não é. Há pelo menos uma minoria que é excluída. Às pessoas que andam de cadeira de rodas, ou que têm a mobilidade limitada, é-lhes negado o acesso a quase tudo, desde o acesso a transportes públicos, à entrada em locais públicos e a eventos culturais, ao andar simplesmente pelas ruas da cidade, como outro qualquer cidadão pode, se assim o entender, fazer.

Nas vésperas de mais uma campanha eleitoral para a Câmara Municipal de Lisboa, e em que supostamente se deverá discutir o desenvolvimento e funcionamento da nossa cidade, é fundamental reflectir sobre estas questões, e mais do que isso, delinear acções que alterem esta realidade.

É com grande indignação que se constata que muitos, possivelmente a maioria dos edifícios geridos por entidades públicas, não têm acesso a pessoas com cadeiras de rodas. Ou então têm uma rampa com uma inclinação excessiva ou precedida por uma escada. Há outras variantes, como existir acesso através de um elevador, que funciona às terças e quintas ou que está sem funcionar por períodos indeterminados. Chega-se ao cúmulo de obras recém inauguradas, como é o caso gritante do São Jorge, não terem acesso. É esta a nossa realidade.

Estas lacunas, esquecimentos, ou o que quer que se lhe queira chamar a este tipo de situações, é sintomática da total falta de respeito pela dignidade humana. Não estamos condenados a viver assim, e basta atravessar a fronteira para encontrar exemplos de cidades construídas para as pessoas, sem excluir ninguém. Não se trata assim de pedir ou mendigar atenção, mas sim exigir que se tratem todos os cidadãos de Lisboa, todas as pessoas que nela vivem ou visitam, com igualdade e respeito.

Pela dignidade e respeito por todos os cidadãos, por uma cidade de Lisboa construída para incluir todos, os abaixo-assinados exigem a adaptação de todos os locais geridos por entidades públicas tenham acesso a cadeira de rodas e a pessoas com mobilidade reduzida.
Assina aqui

melancholic state of mind

E eis que, quando menos esperava, as saudades caíram sobre mim como uma bigorna vinda do céu. Esmagadoras. Saudades de estar com aqueles a quem não preciso de explicar nada.

a justiça está morta

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta".

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítios os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e por tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando para cima da fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

Suponho ter sido esta a única vez, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo de ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável a felicidade do espírito como indispensável a vida e o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que se manifestasse, como um (ilegível) imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trintas direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou insconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá- lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de la Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático, o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma minoria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e por outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular a parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder econômico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
José Saramago, Fórum Mundial Social, 2002

invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

(...)

Daniel Filipe, A Invenção do Amor e Outros poemas
Lisboa, Presença, 1972

Sunday, June 3, 2007

St. Andrews

Fui este sábado a St. Andrews com a Barbara (a técnica do baboratório onde trabalho e que tem uma experiência de 36 anos a trabalhar com tripanossomas!), o Alan (marido) e a Kristen (filha).

St. Andrews é uma pequena cidade na costa Este da Escoce, famosa por ter a Universidade mais antiga da Escoce (e que ainda ficou mais conhecida por ter como estudante o Príncipe William) e o campo de golfe mais antigo do mundo, coladinho a uma bonita e extensa praia.








a minha avó Zé

Posso bem imaginar a reacção da minha avó quando o meu pai e tia lhe mostrarem a fotografia dela no computador, acompanhada das netas. Sempre que é surpreendida por alguma coisa que gosta, dá uns risinhos, enquanto baixa a cabeça e tapa os olhos. De uma das primeiras vezes que lhe telefonei daqui, perguntou-me "então, filha, ainda estás na Inglaterra?". A minha avó Zé tem um olhos azuis lindos e faz o melhor arroz de cenoura do mundo! Tem saudades da sua casa em Donelo, da lareira e de ver o mundo do alto do terraço e sei que reza todos os dias por mim. Avó, penso muito em ti, força e põe-te boa depressa. Um grande beijnho!